A CASA DO SERVIDOR DA JUSTIÇA

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Artigo destaca necessidade de diálogo do Judiciário com os servidores

O autoritarismo da toga*

A melhor leitura do Espírito das leis, de Montesquieu, é aquela que percebe que em momento algum ele concebeu uma separação estanque entre os três Poderes do Estado. Ao contrário, propôs uma divisão de funções entre eles, de modo que cada um detenha a parte principal das atribuições que, materialmente ou quanto ao conteúdo delas, lhe deveria pertencer. Na linha dessa leitura da obra do pensador francês, bem concluiu o professor Nelson de Sousa Sampaio: “Nenhum Poder possui o monopólio de cada função estatal. O Legislativo não faz apenas as leis; o Executivo não se limita a praticar atos executivos; e o Judiciário não se reduz a decidir as lides jurídicas. Cada um deles reúne a maior soma dessas respectivas atribuições, mas conserva uma pequena parcela de competência que, por sua natureza, seria própria dos outros dois Poderes. Somente assim se estruturaria um sistema de freios e contrapesos em que o poder freie o poder, a fim de evitar o retorno ao absolutismo”.

Convém ressaltar que Montesquieu coloca o Poder Judiciário em um plano secundário, já que todos os liberais, naquele contexto histórico, temiam o arbítrio judiciário e um governo dos juízes. Daí por que o juiz deve ser apenas “a boca que pronuncia as palavras da lei, seres inanimados que não lhe podem moderar nem a força nem o rigor”. Logo, no exercício de suas atribuições deve ficar jungido estritamente à Constituição e as leis.

Pois bem, esse questionamento do liberalismo político ao arbítrio judiciário inspirou os textos constitucionais modernos no que concerne à democratização do poder, à independência e à harmonia entre eles. De tal forma que, no Estado de Direito contemporâneo, o juiz, no seu papel de agente político, é integrante de um poder que emana do povo. Contudo, a legitimidade do seu poder tem como fundamento a Constituição, e não a vontade popular manifestada nas urnas. Daí ser oportuna a ponderação do professor Fábio Konder Comparato, censurando o Olimpo em que se coloca o Judiciário: “O Judiciário, como todos os demais órgãos do Estado, não é dono da Justiça, mas existe e deve agir como delegado do povo, único titular da soberania. As suas decisões, portanto, como a de qualquer outro órgão público, podem e devem ser examinadas e criticadas à luz dos princípios do regime constitucional”.

Esse arbítrio judiciário temido por Montesquieu no século 18 resultou na grande conquista histórica de que o exercício da jurisdição e de qualquer ato administrativo só tem legitimidade se tiver como fundamento a lei. No entanto, isso não foi levado em conta pelo atual presidente do Poder Judiciário goiano, quando alterou de forma arbitrária o seu horário de funcionamento, descumprindo o art. 158 do Código de Organização Judiciária, que prevê que o expediente forense deve ser das 8 às 18 horas.

Ressalte-se que esse Código é uma lei de iniciativa privativa do Poder Judiciário, votada pelo Legislativo e sancionada pelo Executivo. Em face dessa decisão autoritária de um magistrado que confunde a toga do juiz com a japona militar, como fica o princípio constitucional da independência e da harmonia entre os Poderes? Com efeito, o Código de Organização Judiciária é o resultado de um processo legislativo democrático, do qual participaram os três Poderes, cada um exercendo as suas competências constitucionais. Esse autoritarismo da toga causa um dano de difícil reparação às instituições democráticas e às normas de cortesia e respeito às prerrogativas que cada um deve ter no exercício da chefia do Poder.

Além do desrespeito ao Legislativo e ao Executivo, esse autoritarismo togado humilhou a categoria dos advogados não só ao alterar o horário de expediente do Judiciário, mas também ao não acolher o pleito do presidente da Ordem dos Advogados para suspender os prazos no período de paralisação das atividades judiciárias, em virtude da greve dos servidores. Mais uma vez Sua Excelência ignorou o texto constitucional, que dispõe ser o advogado indispensável à administração da justiça.

E, por último, não foi capaz de estabelecer um diálogo democrático, sincero com os servidores do órgão, tratando-os com uma arrogância incompatível com os valores democráticos e republicanos que devem ser cultivados no exercício da chefia de um Poder de Estado que, constitucionalmente, exerce o monopólio da jurisdição. Convém ressaltar que o direito de greve é assegurado pela Constituição. Se é um direito, deve ser respeitado, e as reivindicações devem ser ampla e pacientemente discutidas, podendo ser atendidas aquelas que forem razoáveis, em respeito aos servidores.

Em face de toda essa manifestação de um autoritarismo togado, caberá ao futuro presidente do Poder Judiciário goiano restabelecer o diálogo em uma perspectiva democrática com os chefes dos demais Poderes, com o Ministério Público, com a categoria dos advogados, com os servidores e com os demais segmentos da sociedade civil, reafirmando o compromisso histórico e democrático da magistratura goiana com a sociedade.

(*) Jônathas Silva é advogado e professor da Faculdade de Direito da UFG.

[Fonte: Jornal O Popular, edição do dia 06/01/2012]


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